Mais que um devocional.

Séculos de idolatria levaram o povo de Judá a um distanciamento de Deus, que lhes trouxe o cerco de Jerusalém como punição pelo pecado. Por não ouvirem a profecia de Jeremias que lhes dizia para ceder ao imperador babilônico, Nabucodonosor, tornando-se vassalos deles, Jerusalém foi invadida, o Templo destruído e os líderes e milhões de pessoas exilados na Babilônia. Isso aconteceu em 587 a.C.

Entre os exilados estava um jovem de família aristocrática: Daniel. A história da influência de Daniel em todo esse cenário começa quando ele interpreta um sonho do rei Nabucodonosor, que trazia uma mensagem de Deus sobre a sucessão dos poderes na história. Daí para diante, Daniel se tornou o homem de confiança do imperador e de seus descendentes. 

Alguns anos depois, em 539 a.C., a Babilônia era conquistada pelo Império Medo-Persa, liderado por Ciro, o Grande. E, mesmo que fosse um império totalmente diferente, Daniel continuou em posição de comando. Por sua atitude sempre ética, contava com o favor dos imperadores que iam se sucedendo. Isso atraía para ele a inveja dos seus oponentes que almejavam posições mais altas no governo.

Atitude em meio à adversidade

Imagine um príncipe, ainda adolescente, ver parte de seu povo ser exterminado e os sobreviventes serem exilados em outro país. Perder tudo o que tem e passar da condição de príncipe para prisioneiro de guerra e escravo. Ver sua vida se transformar em um caos. Essa foi a história do jovem hebreu Daniel.

O livro de Daniel é excelente para ler e meditar neste tempo em que vivemos uma pandemia na saúde pública, um pandemônio na política e um grande momento de adaptações e lutas na vida pessoal.

Vou me ater à narrativa do último embate de Daniel na vida pública, descrito no capítulo 6, que revela com clareza como homens tementes a Deus reagem em meio a circunstâncias adversas e ambientes totalmente hostis quando aplicam 3 princípios em sua vida: a busca pela excelência mesmo em ambiente hostil, a resistência à idolatria e a confiança na soberania de Deus.

1 – Excelência mesmo em ambiente hostil

Daniel era do povo conquistado. Era visto como raça inferior. Porém, mesmo diante do opressor de seu povo e servindo à outra nação, sua atitude foi a de fazer tudo com excelência para glória de Deus.

Daniel 6:3 diz que “Em pouco tempo, Daniel se mostrou mais capaz que todos os outros administradores e altos funcionários. Por causa da grande capacidade de Daniel, o rei planejava colocá-lo à frente de todo o reino”. E o versículo 4 continua “…Ele era leal, sempre responsável e digno de confiança”. Daniel enfrenta aquele ambiente sacando de dentro de si todas as habilidades que Deus já tinha forjado na vida dele.

A honestidade e o zelo eram uma bandeira na vida de Daniel. Ainda jovem, ele não aceitou os manjares do rei para não se contaminar. Agora, com aproximadamente 80 anos, ele continuava íntegro. Daniel buscava não somente ser fiel e honesto, mas fazer com excelência tudo que lhe vinha às mãos, evidenciando que não servia a nenhum rei, mas que seu caráter vinha de sua motivação de servir a Deus em todas as situações. O princípio da excelência está registrado em Colossenses 3:22-24, quando somos chamados a fazer todas as coisas “…não apenas quando estiverem observando. Sirvam-nos com sinceridade, por causa de seu temor ao Senhor. Em tudo que fizerem, trabalhem de bom ânimo, como se fosse para o Senhor, e não para os homens. Lembrem-se de que o Senhor lhes dará uma herança como recompensa e de que o Senhor a quem servem é Cristo”.

A fidelidade de Daniel ao Senhor e sua integridade de vida garantiu que ele não só sobrevivesse, mas que exercesse influência sobre três grandes reis: Nabucodonosor, Belsazar e Dario, evidenciando aquilo que o colocara em posição de destaque entre os presidentes e os governadores do reino.

Daniel não foi um dos presidentes daquele império por armação política ou porque era queridinho de Dario, mas por um histórico de vida focado na ética e conduzido pela mão de Deus.

E nós? Quantas vezes somos colocados em situação que não queremos ou levados a circunstâncias que não gostaríamos? Sabe aquela função no trabalho que você não gostaria de realizar? Aquela demanda de sua casa ou empresa que surgiu agora por causa da pandemia e que fez você mudar sua rotina, seus gastos e até seu foco?

Infelizmente, o ambiente hostil se torna a melhor desculpa para sermos desonestos e negligentes. Quando estamos sob pressão, tendemos a fragilizar nossas convicções por um instinto muitas vezes de sobrevivência. Quem na infância já não foi tentado a mentir para se livrar de uma punição? Ou agora na vida adulta, diante de uma multa de trânsito que lhe faria perder a carteira, não transferiu os pontos para outra pessoa? Quem nunca ouviu alguém dizer: ganho tão pouco, por que fazer um trabalho com qualidade?

A vida nos leva a momentos difíceis e muitas vezes até para ambientes hostis. A questão é como vamos nos comportar neste novo ambiente. Existem situações que não temos como resolver. Aí, vamos ter que parar e decidir qual é a melhor forma de esperarmos tudo passar. Existem outras situações que podem ser resolvidas com mudanças de atitudes ou sentimentos. Então, também teremos que parar e decidir no que vamos mudar e qual a melhor forma de colocar essa mudança em prática.

Nestes momentos difíceis, podemos lamuriar, murmurar, reclamar de tudo ou podemos inserir nessa nova circunstância todos os nossos dons e habilidades para glória de Deus. Daniel foi um homem de decisão e atitude e, mesmo em meio a um ambiente totalmente desfavorável, buscou fazer o seu melhor, buscou ter excelência.

Mas sua vida e seu caráter provocavam um curto circuito na cabeça daquele povo e é exatamente nesse ponto, que vemos o segundo princípio que o orientou a reagir às circunstâncias que ele passou a enfrentar: a resistência à idolatria.

2 – Resistência à idolatria

A integridade de Daniel era tão apurada, que começou a incomodar aqueles que se aproveitavam das posições que detinham para praticar a corrupção. O capítulo 6 revela a trama armada por oficiais do Império Persa, no reinado de Dario, o Medo. Para manterem seus esquemas corruptos e por temor da integridade de Daniel, que poderia vir a assumir o comando de todo o império (Daniel 6.4), os presidentes e príncipes nomeados pelo rei fizeram Dario assinar um decreto real que não permitia a adoração a nenhum deus, a não ser somente ao rei.

A fim de acharem um meio para tirar o poder que Daniel havia conquistado, os governantes apelaram para o que Daniel mais amava: o seu Deus e a Sua lei (v.5). Tentaram ferir a vida de adoração de Daniel (v.7). Convenceram o rei a assinar um decreto que obrigava todos a orarem somente ao rei por 30 dias (v.7). Quem desobedecesse esse decreto, seria jogado na cova dos leões. A atitude de Daniel agora nos revela o segundo princípio que devemos seguir nos momentos de crise e adversidade.

Os reis medo-persas eram tidos como filhos de Ormuz, o deus do bem na religião zoroastrismo. Aquela lei, portanto, apelava ao ego de Dario. Era uma boa estratégia política, pois fortalecia o status de divindade e autoridade do ditador. Mas o alvo dessa lei específica era outro. O objetivo era destruir a reputação de Daniel no meio do povo de Deus, inventando a narrativa de que ele tinha interesses políticos e não era temente ao Senhor Deus.

Isso é política de má fé. É o que no Brasil se chama de jabuti. Jabuti é o termo popular no meio da política para designar a inserção de norma alheia ao tema principal em um projeto de lei ou medida provisória. Esse termo surgiu por analogia ao ditado popular “jabuti não sobe em árvore”, usado para expressar fatos que não acontecem de forma natural. Hoje no Brasil, com a demanda de emergências por causa do Coronavírus, muitos governantes desonestos estão se aproveitando para colocar seus “jabutis” em projetos de lei, facilitando a corrupção, a impunidade, o ganho fácil.

Outro fato importante que essa narrativa também nos revela é o paradigma da perseguição religiosa do Estado contra a Igreja. Muitas vezes, em nome do Estado laico ou mesmo da defesa dos direitos humanos, leis aparentemente boas guardam em si motivações perniciosas para limitar a liberdade religiosa.

A lei aprovada por Dario não trazia problemas aos povos e governantes do Império, pois, como eram politeístas e viam o Imperador como “filho do deus do bem”, poderiam adorá-lo tranquilamente. Mas para Daniel essa lei trazia problemas porque ele adorava ao único Deus. Daniel tinha uma história de temor a Deus que inspirava seu povo. Ele precisava escolher entre quebrar seu relacionamento com Deus e perder sua autoridade diante de seu povo ou adorar ao rei e manter seu cargo e autoridade no governo.

A idolatria surge muitas vezes em resposta ao medo. O medo de perder seu cargo. O medo de não conquistar o alvo que o rei tinha para ele de lhe dar um cargo ainda maior no governo. O medo de morrer. Daniel poderia pensar: o que são 30 dias? Aquilo que já conquistamos, como o sucesso e a reputação, por exemplo, muitas vezes se torna ídolo para nós e o sentimento de perda nos faz ceder.

Outra idolatria que surge nestes tempos de crise é a idolatria a homens e ideologias, aos salvadores da pátria. Daniel era um servidor do rei. Daniel trazia novas esperanças para o povo de Deus, pois o rei havia mudado a forma de governo. Não havia mais um governo absolutista como o de Nabucodonosor. O que custava Daniel demonstrar fidelidade somente àquele homem, por apenas 30 dias?

Na história, Deus sempre levantou Danieis que resistiram aos ídolos de seu tempo. Ídolos estes que se apresentam como representantes do bem, que possuem o monopólio da virtude. Entretanto, tudo que venha a ferir nosso princípio de amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como Jesus amou precisa de resistência.

Não podemos jurar fidelidade a uma ideologia, a um homem, a um partido político e mesmo a uma nação. Só adoramos e nos rendemos a Deus! Assim como Daniel, precisamos resistir à idolatria de nós mesmos, do nosso sucesso, dinheiro, bens, pessoas e ideias! 

A vida de Daniel era tão ligada à sua adoração a Deus que seus inimigos viram que eles só conseguiriam vencê-lo se o fizessem pecar diretamente contra Deus. E é aí que nos é revelado um terceiro princípio fundamental na vida de Daniel: a confiança na soberania de Deus.

3 – Confiança na soberania de Deus

Foi a confiança plena em Deus que fortaleceu Daniel a viver uma vida de excelência e resistência. Daniel foi fiel e zeloso em tudo ao rei, até o momento em que essa fidelidade mexeu com seus valores essenciais e sua fé. Foi aí que, sem titubear, deixou a fidelidade ao rei e ao sistema em troca de um princípio maior.

Foi o que aconteceu com as parteiras hebreias no Egito, que desobedeceram a ordem de Faraó e salvaram os primogênitos; com os apóstolos que desobedeceram o Sinédrio e não pararam de pregar; com Paulo, que desobedeceu ao imperador e pregou que existe somente um “Senhor” e terminou sua vida em uma cadeia; com os mártires da história; com Martin Luther King, que não aceitou a segregação racial; e com tantos outros que, com coragem, dizem não a qualquer ideia que fira valores essenciais da fé cristã.

Em seu momento de crise, a confiança na Soberania de Deus levou Daniel à sua primeira ação: orar (vs.10-11). Essa deve ser nossa atitude também. Devemos orar antes de agir. Devemos refletir naquilo que Deus tem para nós. Ver se o Reino de Deus realmente está em primeiro lugar, se os valores desse Reino estão em evidência. A oração, a adoração e a contrição nos levam a confiar que Deus pode fazer o milagre imediato ou nos capacitar a enfrentar a dor. Assim, depois da oração, da adoração e gratidão, tomamos nossa decisão.

Existem provações que teremos que passar. Nada pode impedi-lo. Daniel, mesmo sendo amigo do rei Dario, foi pego em oração ao Deus de Israel e, como consequência, jogado em uma cova com leões famintos. Nem o rei conseguir salvar Daniel daquele decreto. A vida de excelência de Daniel fez o rei buscar todos os meios para salvá-lo (v.14), mas não encontrou. Diante de situação tão adversa, o próprio rei fez um clamor ao Deus de Daniel: “Que seu Deus, a quem você serve fielmente, o livre” (v.16). O próprio rei chamou Daniel à confiança plena em Deus.

Existem momentos que Deus não nos livra da provação, mas Ele em Sua soberania nos capacita a passar por ela. Minuto a minuto, hora a hora, dia após dia. Daniel não foi liberto da cova dos leões e agora teria que passar uma noite inteira com os rugidos, faros, olhos e garras em sua direção. Minuto a minuto exercitando sua confiança em Deus.

Quantas vezes precisamos enfrentar os leões e as horas não passam? Os dias não chegam ao fim? A prova não vai embora? O deserto não acaba? Quantas noites você já lutou contra uma enfermidade? Contra a insegurança de saber como será o dia de amanhã? Contra um pecado, uma compulsão? São nestes momentos que precisamos reafirmar ainda mais nossa confiança no Senhor e saber que o dia vai amanhecer e o Senhor trará livramento.

Ao amanhecer, Daniel foi liberto. O anjo do Senhor fechou a boca dos leões durante toda a noite. Daniel saiu ileso daquela cova e foi exaltado e honrado, enquanto seus inimigos foram desmascarados e destruídos (v.24).

Daniel não podia controlar a maquinação dos seus inimigos, nem fazer o rei retroceder, nem mesmo se recusar a ir para cova dos leões. Mas ele podia se manter em uma vida de excelência, adoração e integridade. Ele podia continuar colocando sua confiança em Deus e isso ele fez. 

O que cabe a nós é nos mantermos fiéis, vivendo com excelência e resistindo a todo tipo de ídolo que nos é oferecido. Cabe a nós cuidarmos de nosso testemunho acima de tudo. Buscarmos excelência no relacionamento com nossa família, excelência no que fazemos. Cabe a nós honrarmos a Deus com a nossa vida. Cabe ao Senhor nos livrar das garras do inimigo.

Daniel foi aquele que viu a Babilônia cair. Daniel foi promovido no reino de Ciro e também no reino de seu sucessor Dario, o persa. Deus honra aqueles que o honram. Deus é quem exalta e quem também humilha. Mais do que Daniel, o nome de Deus é que foi proclamado e exaltado em todo o império Medo-persa (vs.26,27). A glória de Deus, o Senhor da história é que deve ser o fim último de nossa vida. Nossa vida deve carregar tamanho testemunho que os homens vejam nossas boas obras e glorifiquem ao nosso Pai que está nos céus. Nossa resistência às idolatrias pessoais deve ser tão engajada que proclama a soberania de um só nome, Jesus.

Assim os homens, mesmo sem querer, dirão como Dario disse:  “…ele é o Deus vivo e permanecerá para sempre. Seu reino jamais será destruído, e seu domínio não terá fim. Ele livra e salva seu povo; realiza sinais e maravilhas nos céus e na terra. Foi ele que livrou Daniel do poder dos leões” (v.26,27).

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