Mais que um devocional.

Davi: “um coração angustiado” — E pediu para si a morte

Estou encurvado e atormentado; entristecido, ando o dia todo de um lado para o outro. Meu corpo arde em febre, minha saúde está arruinada. Estou exausto e abatido; meus gemidos vêm de um coração angustiado. 

Salmo 38.6-8 

 

No Salmo 38, podemos ver um texto no qual Davi fala sobre seu sofrimento. Um sofrimento tão profundo que parece indicar, como bem expresso por Hernandes Dias Lopes, “uma dolorosa depressão que o arrebatou em suas possantes garras, sugando-lhe a seiva da vida”. 

 

Se assim for, tal depressão foi “dolorosa” não apenas pelo seu efeito emocional, mas também pela somatização da sua depressão, ou seja, pela expressão da dor emocional no próprio corpo, por meio de dores físicas. Dores estas que fazem Davi afirmar que seu “corpo definhou” (Sl 32.3), e que seus ossos “se desgastam” (Sl 31.10), por conta de seu sofrimento. Talvez tais dores tenham sido resultantes de uma “amplificação somatossensorial” relacionada à depressão de Davi. O fato, porém, é que Davi descreve em inúmeros salmos suas dores e queixas, levando-nos a ter uma visão de sua trajetória, quando colocada à luz destes salmos, como uma vida atrelada ao sofrimento. 

 

A vida de Davi, conforme podemos ver na Bíblia, era bastante complicada: para além das grandiosas vitórias que Deus lhe deu, Davi também tem uma vida marcada pelos seus pecados, os quais tiveram terríveis consequências não somente para ele, mas também para seu povo e até sua família. Por causa disso, Davi sofreu profundamente, e sua vida foi um turbilhão de sentimentos. 

 

Este sofrimento pode ser percebido em seus salmos, que transparecem “sentimentos de desespero, abandono e até pensamentos suicidas”. Tais pensamentos suicidas, porém, não são explicitados no livro de Salmos, aparecendo somente em uma declaração de Davi no livro de 2 Samuel, quando seu filho Absalão havia morrido: “Ah, meu filho Absalão! Meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera eu tivesse morrido em seu lugar! Ah, Absalão, meu filho, meu filho!” (2 Sm 18.33). Uma declaração que expressa aquele sentimento de injustiça que temos com a perda de alguém que amamos: “Por que eu estou aqui? E a filha, o filho, a neta, o neto não?”. 

 

Palavras de desespero, que desejam a morte pela vida do filho perdido, em razão da dor que se sente. Uma dor profunda, resultante não apenas do luto pela perda de um filho, mas também pela culpa em função do pecado, cujas consequências o levaram a viver aquela situação trágica. Tragédia esta que, tal como as demais na vida de Davi, era respondida por ele com suas canções, as quais destacavam o arrependimento pelo seu pecado e abriam seu coração diante de Deus. 

 

Tais canções, para nós, são salmos que serviram de base para inúmeros louvores. Porém, para Davi, é bem provável que tenham sido mais do que isso. Afinal, considerando a relação de seus salmos com seu sofrimento, podemos pensar nestes como “válvulas de escape” que ele tinha para aquilo que sentia. “Válvulas” que eram muito melhores do que o consumo de drogas como o álcool, como muitos acabam fazendo. 

 

Afinal, podemos pensar na composição de seus salmos como uma espécie de “arteterapia” de Davi, a qual estava ainda vinculada à sua espiritualidade. E estas — a arteterapia e a espiritualidade — “são meios de busca de sentido para vida, onde juntas podem direcionar mais efetivamente e satisfatoriamente essa procura”. Uma procura cuja resposta era encontrada por Davi por meio de sua exposição diante de Deus e seu arrependimento, que lhe resgatavam o sentido de sua vida. 

 

Talvez seja por conta deste duplo aspecto — exposição e arrependimento — que Davi tenha sido um “um homem segundo o coração” (1 Sm 13.14) de Deus. Afinal, quando Deus afirma que Davi “fará tudo que for da minha vontade” (At 13.22), com certeza não pensou em Davi como alguém perfeito — uma vez que Davi estava longe de ser perfeito! —, mas considerou seu arrependimento, uma vez que “o Senhor olha para o coração” (1 Sm 16.7). 

 

No caso de Davi, o que Deus via condizia com o que ele lhe apresentava: Davi não somente se arrependia, mas também expunha sua alma diante de Deus. Não fingia estar bem, nem que entendia tudo que acontecia com ele. Pelo contrário: Davi não apenas afirmava para Deus seu sofrimento, indicando que estava “à beira um colapso”, enfrentando “dor constante” (Sl 38.17), mas também não escondia seu sentimento de que era Deus quem o fazia sofrer, mesmo que como resultado de seu pecado: “Tuas flechas se cravam fundo em mim, e o peso de tua mão me esmaga” (Sl 38.2). 

 

Um sofrimento que Davi sentia especialmente quando não havia confessado seu pecado, e que lhe afetava tão profundamente, que acabava não apenas com seu emocional, mas igualmente com seu corpo: “Enquanto me recusei a confessar meu pecado, meu corpo definhou, e eu gemia o dia inteiro. Dia e noite, tua mão pesava sobre mim; minha força evaporou como água no calor do verão” (Sl 32.3-4). Um sofrimento cuja solução estava em Deus, através da confissão e arrependimento. 

 

Afinal, de que adiantaria esconder algo de Deus? Ele sabe tudo o que pensamos e sentimos: “Tu conheces meus desejos, Senhor, e ouves cada um de meus suspiros” (Sl 38.9). Porém, isto não é desculpa para não apresentarmos a Ele o que sentimos e pensamos, assim como nossos pecados: por mais que Ele saiba, Ele quer que venhamos a falar para Ele nossos pecados, mas também nossos sentimentos, expondo a nossa alma diante d’Ele, tal como Davi fazia. Até porque “dar nome” aos nossos sentimentos pode ser um passo importante no nosso processo de autoconhecimento e, inclusive, de cura emocional, favorecendo não somente a aproximação, mas também a dependência de Deus.

E pediu para si a morte — personagens bíblicos que quase desistiram

Para além dos casos de suicídio na Bíblia, há também os casos de prevenção ao suicídio: pessoas que quase desistiram, chegando ao ponto de pedirem para si a morte, mas que foram amparadas e cuidadas por Deus.

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