Mais que um devocional.

O caminhar de Enoque com Deus

Enoque é mencionado na Bíblia por sua grande piedade. No texto, ele é descrito de maneira muito extraordinária. Temos aqui um relato curto, mas muito completo e glorioso, tanto do seu comportamento neste mundo quanto da maneira triunfante de sua entrada no além. O primeiro está contido nestas palavras: “Andou Enoque com Deus”; o último, nestas: “e já não era, porque Deus o tomou para si”. Ele não era, isto é, não foi encontrado, não foi tomado da maneira comum, não viu a morte, porque Deus o havia trasladado (Hebreus 11:5). 

Não fica muito claro quem era esse Enoque. A mim parece que ele teria sido uma pessoa pública; suponho que, como Noé, um pregador da justiça. E, se podemos acreditar no apóstolo Judas, um pregador flamejante, porque Judas cita uma das profecias de Enoque, na qual ele diz: “Eis que veio o Senhor entre suas santas miríades, para exercer juízo contra todos e para fazer convictos todos os ímpios, acerca de todas as obras ímpias que impiamente praticaram e acerca de todas as palavras insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele”. 

O autor da epístola aos Hebreus diz que, antes de ser trasladado, ele obteve testemunho de “haver agradado a Deus”, e ser trasladado foi uma prova indubitável disso. E eu observaria que houve em Deus uma maravilhosa sabedoria em trasladar Enoque e Elias sob a dispensação do Antigo Testamento, para que depois, quando se afirmasse que o Senhor Jesus foi levado ao Céu, isso não parecesse algo absolutamente inacreditável aos judeus, uma vez que eles mesmos confessaram que dois de seus próprios profetas foram trasladados várias centenas de anos antes. 

“Andou Enoque com Deus.” Se apenas isso puder ser verdadeiramente dito de você e de mim após a nossa morte, não teremos motivo algum para reclamar que vivemos em vão.

Talvez possa parecer uma afirmação severa para alguns, mas a nossa própria experiência comprova diariamente o que as Escrituras afirmam em muitos lugares: que a mente carnal, a mente do homem natural não convertido, ou melhor, a mente do próprio regenerado, enquanto qualquer parte dele permanece não renovada, é inimizade — não apenas um inimigo, mas inimizade em si — contra Deus, de modo que não se sujeita à Sua lei, nem deveras poderia fazê-lo. De fato, podemos questionar que qualquer criatura pudesse ter alguma inimizade, menos ainda uma inimizade prevalente, contra o próprio Deus em quem ela vive, se move e tem sua existência. 

Porém, infelizmente é assim. Nossos antepassados a contraíram quando foram destituídos da glória de Deus ao comerem do fruto proibido, e seu amargo e maligno contágio sobreveio e se disseminou por toda a sua posteridade. E todo aquele pecado e perversidade expostos, que inundaram o mundo como um dilúvio, não passam de muitos rios que fluem dessa terrível fonte contagiosa — estou falando de uma inimizade do coração do homem desesperadamente perverso e enganoso. Aquele que não consegue estancar isso nada sabe ainda, de maneira salvadora, acerca das Sagradas Escrituras ou do poder de Deus. E todos os que sabem disso reconhecerão prontamente que, antes de uma pessoa poder ser considerada como alguém que anda com Deus, o poder predominante dessa inimizade de coração precisa ser removido, porque pessoas que nutrem mútua inimizade e ódio irreconciliáveis não costumam andar e ficar juntas. 

“Andarão dois juntos (diz Salomão [na verdade, Amós 3:3]), se não houver entre eles acordo?” Jesus é a nossa paz, bem como o nosso Pacificador. Quando somos justificados pela fé em Cristo, mas não antes disso, temos paz com Deus; consequentemente, até então, ninguém pode dizer que anda com Ele, porque andar com uma pessoa é um sinal e símbolo de que somos amigos daquela pessoa ou, no mínimo, embora tenhamos discordado, agora estamos reconciliados e nos tornamos amigos novamente. Essa é a grande missão a que os ministros do evangelho são enviados. A nós é entregue o ministério da reconciliação; como embaixadores de Deus, devemos, em nome de Cristo, suplicar aos pecadores que se reconciliem com Deus e, quando eles aceitarem o gracioso convite e forem realmente levados por fé à condição de reconciliados com Deus, somente então se poderá dizer que eles começaram a andar com Deus.

Foi isso o que o nosso Senhor prometeu quando disse a Seus discípulos que o Espírito Santo estaria neles e com eles; não como o viajante, permanecendo apenas uma noite, e sim residindo e fazendo Sua morada no coração deles. Sou inclinado a acreditar que foi isso o que o apóstolo João desejou que entendêssemos quando falou de uma pessoa permanecer nele, em Cristo, e “também andar assim como ele andou”. E esse é o significado específico das palavras do nosso texto. “Andou Enoque com Deus”, isto é, ele manteve e preservou a comunhão e amizade santa, estabelecida, habitual, embora indubitavelmente não totalmente ininterrupta, com Deus, em e por meio de Cristo Jesus.

Portanto, resumindo o que foi dito até aqui sobre o primeiro tópico geral, andar com Deus consiste especialmente na inclinação habitual fixa do desejo por Deus, em uma dependência habitual de Seu poder e Sua promessa, em uma dedicação voluntária habitual de todo o nosso ser para a Sua glória, em um exame habitual do Seu preceito em tudo que fazemos e em uma habitual complacência no Seu prazer em tudo que sofremos.

A primeira ideia da palavra andar parece supor um movimento progressivo. Ainda que se mova lentamente, uma pessoa que avança e não continua em um só lugar. Assim ocorre com quem anda com Deus: avança, como diz o salmista, “de força em força”; ou, na linguagem do apóstolo Paulo, “de glória em glória […] como pelo Senhor, o Espírito”. De fato, em certo sentido, a vida divina não admite aumento, nem diminuição. Quando uma alma é nascida de Deus, para todos os efeitos e propósitos é filha de Deus; embora possa viver até a idade de Matusalém, ainda assim seria, afinal de contas, apenas filha de Deus. Porém, em outro sentido, a vida divina admite diminuições e aumentos. É por isso que vemos o povo de Deus ser acusado de apostasias e perder o seu primeiro amor. E é também por isso que ouvimos falar de crianças, jovens e pais em Cristo. Por conta disso, o apóstolo exorta Timóteo: “o teu progresso a todos seja manifesto”. E o que aqui é requerido de Timóteo em particular é ordenado pelo apóstolo Pedro a todos os cristãos em geral. Ele diz: “crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”, pois a nova criatura aumenta em estatura espiritual e, embora uma pessoa possa ser apenas uma nova criatura, ainda assim há algumas mais conformadas à imagem divina do que outras e, após a morte, serão admitidas a um maior grau de bem-aventurança.

Pelo que então foi dito, agora podemos saber o que está implícito nas palavras “andou com Deus”: a inimizade prevalente do nosso coração é removida pelo poder do Espírito de Deus, nosso ser é realmente reconciliado e unido a Ele pela fé em Jesus Cristo; assim temos e mantemos uma comunhão e amizade estabelecida com Ele e fazemos progresso diário nessa amizade, de modo a sermos cada vez mais conformados à imagem divina.

Grandes pregadores falam sobre santidade

Artigo retirado de trecho do livro

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