Cinco lições das bem-aventuranças - Por: João Calvino
Agora vejamos, em primeiro lugar, porque Cristo falou a Seus discípulos sobre a verdadeira bem-aventurança. Nós sabemos que não apenas a maioria das pessoas, mas até mesmo os instruídos cometem este erro: conceber que alguém livre de aborrecimentos alcança todos os seus desejos e leva uma vida prazerosa e tranquila. Portanto, para que Seu povo pudesse se acostumar a carregar a cruz, Cristo expõe a equivocada opinião de que aqueles que levam uma vida tranquila e próspera de acordo com a carne são felizes.
A única consolação que abranda e até mesmo adoça a amargura da cruz e das aflições é a convicção de que somos felizes em meio às misérias; pois nossa paciência é abençoada pelo Senhor e será em breve seguida de um feliz resultado.
Os discípulos de Cristo devem aprender a filosofia de colocar sua felicidade além do mundo e acima das afeições da carne. Ainda que a razão nunca admita o que é aqui ensinado por Cristo, Ele não apresenta algo imaginário. Lembremo-nos, portanto, que o objetivo principal do discurso de Cristo é demonstrar que aqueles que são oprimidos pelas reprovações dos perversos e são vítimas de várias calamidades não são infelizes.
Vemos que Cristo não dilata a mente daqueles que pertencem ao Seu povo com alguma crença falsa ou os endurece até o ponto de implacável obstinação, mas os guia para manterem a esperança de vida eterna e os estimula à paciência garantindo-lhes que desta forma serão aprovados no reino celestial de Deus. Merece nossa atenção o fato de que somente aqueles que são reduzidos a nada em si mesmos e apoiam-se na misericórdia de Deus são humildes de espírito; pois aqueles que são abatidos ou sobrecarregados pelo desespero queixam-se de Deus e isso prova que são de espírito orgulhoso e soberbo.
Por “mansos” Ele quer dizer pessoas de disposições amenas e gentis, que não se iram facilmente com agressões, que não estão prontas a se ofender, mas preparadas para suportar qualquer coisa antes de executar as mesmas tarefas que os perversos. Quando Cristo promete a herança da Terra aos mansos, nós podemos considerar como algo tolo. Aqueles que rechaçam raivosamente qualquer ataque e cujas mãos estão sempre prontas para se vingar de danos causados são as pessoas que mais reivindicam para si o domínio da Terra. E a experiência certamente demonstra que, quanto mais amavelmente alguém suporta a perversidade deles, mais ousada e insolente a torna. Daí surge o provérbio maligno: “Devemos uivar com os lobos, porque os lobos imediatamente devorarão todos os que são ovelhas”. Mas Cristo dá a Sua própria proteção e a proteção do Pai, em contraste com a fúria e violência dos perversos e declara, com razão, que os mansos serão senhores e herdeiros da Terra. Os filhos deste mundo nunca acreditam estar seguros e se vingam ferozmente dos danos que lhe são causados e defendem sua vida “…com as suas próprias armas de guerra…” (EZEQUIEL 32:27). Mas como devemos crer que somente Cristo é o guardião de nossa vida, tudo o que nos resta é nos esconder “…à sombra das tuas asas” (SALMO 17:8). Devemos ser ovelhas se desejamos ser reconhecidos como parte de Seu rebanho.
Para “fome e sede” aqui, creio eu haver o uso de uma expressão figurada e significa sofrer de pobreza, ter falta do necessário para a vida e até mesmo ser defraudado em seus direitos. Pode ser parafraseado como: “Felizes são aqueles que, ainda que seus desejos sejam tão moderados a ponto de não desejarem nada que não seja o razoável, estão, contudo, definhando como pessoas que estão famintas”. Ainda que sua penosa angústia os exponha a serem ridicularizados, contudo trata-se de certa preparação para a felicidade, pois finalmente serão satisfeitos. Deus um dia ouvirá seus gemidos e satisfará seus desejos. Pois a Ele, como aprendemos com o cântico de Maria, pertence a tarefa de suprir o faminto de bens (LUCAS 1:53).
Quando Cristo diz: “…bem-aventurados os misericordiosos…”, Cristo diz que felizes são aqueles que não apenas estão preparados para suportar suas próprias dificuldades, mas também para compartilhar das dificuldades de outros que auxiliam os miseráveis, que voluntariamente participam da angústia que veste outros, de certo modo com as mesmas emoções conturbadas, para que estejam mais prontos a dar assistência a outros.
Quando Cristo diz: “Bem-aventurados os limpos de coração…”, declara como felizes são aqueles que não se deleitam na astúcia, mas que lidam honestamente com os homens e nada expressam, por palavra ou aparência, que não sintam em seu coração. Pessoas simples são ridicularizadas pela falta de cautela e por não pensarem o suficiente em si mesmas. Mas Cristo as direciona a visões elevadas e lhes propõe considerar que se lhes falta sabedoria neste mundo para ludibriar, eles, no Céu, contemplarão a Deus.
Quando fala de pacificadores, Ele fala daqueles que não apenas buscam a paz e evitam contendas, de acordo com o que lhes é possível fazer, mas que também trabalham para acabar com diferenças entre outros, que aconselham todos a viverem em paz e removem toda circunstância de ódio e conflito. Há bons fundamentos para essa afirmação. Sendo dura e exasperante a tarefa de reconciliar aqueles que estão em desacordo, pessoas que têm uma disposição branda, que estudam para promover a paz, são compelidas a suportar a indecência de ouvir reprovações, queixas e contestações de todos os lados. A razão é: todos querem advogados que defenderão somente sua causa. Para que não dependamos do favor das pessoas, Cristo nos propõe olharmos para o alto, para o julgamento de Seu Pai, que é o Deus da paz (ROMANOS 15:33) e que nos considera Seus filhos quando cultivamos paz.
Não podemos ser soldados de Cristo em nenhuma outra condição salvo tendo a maior parte do mundo levantando-se em hostilidade contra nós e nos perseguindo até a morte. O estado da questão é este: Satanás, o príncipe do mundo, jamais deixará de encher seus seguidores de fúria para prosseguir com hostilidades contra os membros de Cristo. É, sem dúvida, monstruoso e anormal que pessoas dedicadas a viver de forma íntegra sejam atacadas e atormentadas de um modo que não merecem. Entretanto, devido à perversidade desenfreada do mundo, com muita frequência acontece que pessoas boas, por meio do zelo pela justiça, despertam contra si mesmas os ressentimentos dos impiedosos. É, acima de tudo, como se pode dizer, o destino comum dos cristãos serem odiados pela maioria da humanidade. Pois a carne não pode suportar a doutrina do evangelho; ninguém suporta quando seus vícios são reprovados.
Agora, a respeito disso, a verdade de Deus, merecidamente, está em primeiro lugar. Mas, se a qualquer momento o Senhor nos poupa por nossa fraqueza e não permite que o impiedoso nos atormente como desejaria, é, contudo, adequado, durante o período de descanso e ócio, que meditemos nessa doutrina para que estejamos prontos quando for necessário entrar em campo e não entremos na disputa até que tenhamos sido bem preparados.