Jó: "melhor morrer que sofrer assim" — E pediu para si a morte
JÓ E SEU CORPO: DOENÇA E MORTE
Ao declarar “melhor morrer que sofrer assim”, Jó destaca que, em seu luto e doença, a morte parece uma espécie de “mal menor” do que o sofrimento pelo qual está passando. Trata-se da ideia descrita por Norbert Elias de que, para algumas pessoas, aparentemente, “a morte não é terrível”, pois “passa-se ao sono e o mundo desaparece, mas o que pode ser terrível na atualidade é a dor dos moribundos, bem como a perda de uma pessoa querida sofrida pelos vivos”.
Ou seja, para muitos que sofrem com a dor do luto ou com o sofrimento constante por causa de uma doença, a morte pode parecer um alívio. Afinal, vemos no Antigo Testamento que a doença pode ser um fator para o desejo pela morte, assim como o sofrimento psicológico, dois caminhos para um sofrimento que pode ser tão profundo que aquele que sofre pode simplesmente querer um “basta” para sua dor. Afinal, “para cada pessoa há um ‘basta’”. No caso de Jó, que passou por ambos ao mesmo tempo, esse desejo parece ter se mostrado ainda mais forte.
Jó experimentou esse duplo sofrimento e, por conta disto, não somente desejou a morte profundamente, mas também a viu como uma espécie de “amiga”, em claro contraste com a imagem da morte como “inimiga”, como aparece ao longo do Antigo Testamento. Jó vê a morte como “amiga” porque perdeu o valor de sua vida. Sente que nem mesmo pode se considerar vivo, para Jó, ele “nem sequer vive, está como morto”. É como se a única diferença entre sua vida e sua morte fosse que, na morte, ele não sofreria mais.
Jó, mais do que qualquer outra pessoa, nos mostra como “uma pessoa deprimida flerta com a morte e a deseja ardentemente”. Porém, precisamos lembrar que “uma pessoa deprimida não deseja morrer porque odeia a vida, mas porque ama a vida o suficiente para querer o fim da dor”156. Jó não desejava a morte porque pensava que a morte era melhor do que a vida, mas porque pensou que a sua morte seria melhor do que a sua vida.
O natural não é desejarmos a morte, mas desejarmos a vida! O ser humano é um ser diferente não somente porque tem consciência de sua morte, como muitos destacam, mas também porque tem consciência de sua vida! Apesar de muitos bebês começarem a vida chorando, a infância é marcada pelo encanto e pela descoberta. Porém, ao longo da nossa trajetória, muitas vezes nossa alegria parece ser roubada, é como se o prazer na vida fosse se apagando, gerando inclusive um desejo pela morte.
O desejo pela morte, portanto, deve ser visto como momentâneo, mas que nem por isso deve ser desprezado! Pois, se um desejo desse tipo chegou ao coração de alguém, é porque esta pessoa esteve (mesmo que por um breve momento) mal o suficiente para não ver a vida da forma correta. Ou seja, mesmo que tenha ocorrido uma única vez, deve servir de alerta, para buscarmos reacender aquele amor pela vida que deve nos marcar, e para pensarmos no que nos afligiu, já que “só na aflição extrema pode haver um desejo da morte”.
Quando alguém pensa, tal como Jó, que é “melhor morrer do que sofrer assim”, é porque a pessoa reduziu sua visão da vida ao sofrimento. É esta “lente do sofrimento” que faz a pessoa ver a vida como um problema, e a morte como solução. Não é que aquela pessoa é uma pessoa depressiva. A depressão e o sofrimento são estados nos quais podemos nos encontrar, e não elementos da nossa identidade. E ninguém está isento de passar por isso. Qualquer um de nós pode acabar desejando a morte, especialmente quando não conseguirmos ver nada em nossa vida para além dos problemas ou quando pensarmos que, como Jó, perdemos tudo que tínhamos. Foi o caso de um pastor que foi se consultar com a psicóloga Roseli M. Kühnrich de Oliveira:
Ele chorava, sentado à minha frente. Seu mundo havia desmoronado. O divórcio apenas explicitara o drama familiar. Primeiro o distanciamento, depois a indiferença. Agressões verbais, desconsideração, xingamentos, insultos e, por fim, violência física. De ambas as partes. Consumido pela ira e por ciúmes, agrediu a esposa. Proibido por ordem judicial de se aproximar da mulher, ele baqueou. De um dia para outro perdeu a família e tudo em que acreditava. “A igreja me dispensou”, contou ele com profunda tristeza. E na sequência perdeu a casa, o salário, a cama e até o chinelo. Por fim, cabisbaixo e sem me olhar, confessou: “Vindo aqui para a consulta, tirei as mãos do volante e fechei os olhos”.
Como ela explica, o desejo do pastor não era o de morrer, mas que a dor acabasse e que seus problemas sumissem. Sendo assim, o desejo pela morte se dava pela ilusão desta como solução. Trata-se de um mal que pode acometer qualquer um: como bem lembra Ismael Sobrinho, “vemos na Bíblia homens e mulheres que andaram com Deus e apresentaram, por exemplo, sintomas depressivos e de angústia extrema”, assim como grandes referências no cristianismo, como Charles Haddon Spurgeon (1834–1892) sofreram de depressão. Cabe, portanto, ajudarmos a pessoa a resgatar o prazer na vida, para que possa ver sua beleza.
Quanto ao luto, muitas vezes o que podemos fazer é simplesmente consolar, estar junto, e abraçar. Afinal, quem sofre não quer saber a razão do seu sofrimento, mesmo que pergunte “Por quê?!” sem parar. O que a pessoa realmente quer é que a dor passe, e a dor somente pode passar quando a ferida da alma for curada. Algo que exige tempo, que exige cuidado, e que precisa ser visto com olhar de esperança.
Uma pessoa no início de um luto precisa ser cuidada com compreensão, e não questionada com repreensão. Por isso, pode-se dizer que os amigos de Jó começaram bem, mas terminaram mal: eles foram até Jó com a intenção de “consolá-lo e animá-lo” (Jó 2.11), e fizeram bem ao chorarem junto com Jó e ficarem em silêncio. Ao romper o silêncio, porém, Elifaz não teve sabedoria, indicando que o sofrimento de Jó seria fruto do pecado. Ao invés de consolá-lo, trouxe-lhe mais desespero.
Mesmo as palavras de consolo, porém, devem ser medidas, como fez Abraham Lincoln: em novembro de 1864, o então presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln, escreveu uma carta a Lydia Parker Bixby, a qual ficou conhecida como Carta Bixby (inglês: Bixby Letter). A senhora Bixby, que serviu de inspiração para o famoso filme O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan), de 1998, havia perdido seus cinco filhos na Guerra Civil Americana. Diante do luto daquela mulher, as palavras de Lincoln foram sucintas, destacando uma verdade: “Eu sinto quão fraca e infrutífera deve ser qualquer das minhas palavras que tente afastá-la da dor de uma perda tão pesada”.
Precisamos ter sabedoria quando lidamos com o sofrimento alheio, acolhendo aquele que sofre a dor do luto, e não lhe negando ajuda ou julgando, como fizeram a esposa e os amigos de Jó. Ao mesmo tempo, aquele que sofre com o luto, ou que deseja a morte por outra razão, deve buscar ajuda. E, mesmo que tenha tido experiências negativas ao abrir o coração, recebendo julgamento e contestação, deve procurar quem possa o ajudar com amparo e amor.
Trecho retirado do livro E pediu para si a morte — personagens bíblicos que quase desistiram, de Publicações Pão Diário.